Preciso saber

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Dedicado ao Xilre :)



"Caramba, logo me calharia ter que que levar para férias o meu adversário mais acirrado, cético e tenaz. Eu, leitora"

"As coisas que me foram dadas são, na verdade, uma dádiva grande. Não há razão para crítica. Só tenho de me sentir grato."

Poderemos, também, andar sempre em competição connosco?

Μεμψιμοιρία

Desculpem o título em grego: é só porque não há palavra equivalente em nenhuma outra língua. Trata-se de uma palavra que ocorre numa obra fascinante escrita por Teofrasto, aluno de Aristóteles, intitulada «Caracteres». Esta obra descreve 30 tipos de personalidade humana; a personalidade n.º 17 corresponde à palavra em epígrafe, cuja transliteração é «mempsimoiría». Transliterá-la é fácil. Mais difícil será traduzi-la.

Mas comecemos pela imagem que acompanha este texto: um pormenor da Capela Sistina, pintada por aquele que é talvez o maior génio da história da Humanidade: Michelangelo. Quando lemos sobre a vida de Michelangelo, uma das coisas mais impressionantes é o que ele investiu de ódio, de paranóia e de inveja contra Rafael. Ele sentia uma inveja doentia de Rafael, do seu talento, do seu charme, da sua beleza. Achava que Rafael o plagiava; o ódio contra Rafael foi um dos grandes venenos da sua vida. Ora Rafael, como se sabe, morreu tragicamente novo (em 1520, com 37 anos); Michelangelo morreu em 1564 (com 88 anos). Nunca, até ao fim da sua vida, Michelangelo deixou de invejar Rafael.

No século XX, aquele que foi o maior génio da interpretação musical - Wilhelm Furtwängler - teve um problema semelhante em relação a Herbert von Karajan. A inveja de Furtwängler pelo sucesso de Karajan foi, de certa forma, aquilo que o matou.

Nós hoje pensamos: por muito geniais que fossem Rafael e Karajan, não estavam no mesmo campeonato de Michelangelo e de Furtwängler. Então por que razão estes tinham de viver uma vida de paranóia e de inveja em relação àqueles? A resposta é simples: μεμψιμοιρία.

Esta palavra designa, no fundo, o descontentamento do eu consigo mesmo. É disso que fala Teofrasto. É disso que fala Horácio, na sua primeira sátira. O soldado exclama «o fortunati mercatores!» Os mercadores dizem que os soldados é que têm uma vida boa. O lavrador diz que os advogados é que são felizes. Etc, etc. Trata-se de não se estar contente com aquilo que se é. Trata-se de achar que a felicidade está na posse de outrem. O soldado tem inveja do mercador. Michelangelo, esse homem insuportável que nunca tomava banho, queria ter o charme encantador de Rafael. O macambúzio Furtwängler queria, talvez, ser o carismático Karajan.

Tudo isto para dizer o quê? Que eu próprio toda a vida sofri de μεμψιμοιρία: do descontentamento com o facto de ser eu. As pessoas que me conhecem mais intimamente sabem como quis ser muitas outras coisas (pianista, cantor, cravista, germanista) quando já me tinha sido dada a oportunidade de ser feliz como aquilo que sou: professor de Grego e Latim. Ultimamente, têm-me surpreendido (agradavelmente!) os pensamentos espontâneos de felicidade e de contentamento com o que sou. Meu Deus, que privilégio ser eu próprio: é certo que não sou um pianista como Dinu Lipatti, nem um cantor como Dietrich Fischer-Dieskau, nem um cravista como Gustav Leonhardt, nem um grande germanista... e também não sou um grande helenista como James Diggle nem um grande latinista como Michael Reeve... Mas consegui reconciliar-me com o que sou - com as limitações e com as qualidades inerentes a ser esse homem chamado Frederico - o que equivale a dizer que sou feliz com quem sou.

O que é uma grande vitória para quem nunca pensou livrar-se da μεμψιμοιρία que sempre o atormentou.

A definição que Teofrasto dá da «mempsimoiría» é «crítica além do que fica bem das coisas que foram dadas». As coisas que me foram dadas são, na verdade, uma dádiva grande. Não há razão para crítica. Só tenho de me sentir grato.

E alegrar-me porque, pelo menos nisso, superei Furtwängler e Michelangelo.



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