Silêncio por favor que a matança a sério ainda não começou.
COVID-19 e o manto de silêncio por António Garcia Pereira
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O nosso País está hoje submetido a uma abafada e opressiva atmosfera que, em nome da “união nacional” ou do “patriotismo”, impede e exclui que todas as opiniões, críticas e até simples relatos de factos que saiam “fora da caixa” e não correspondam à ideologia oficial sejam minimamente conhecidos, e muito menos que cheguem à generalidade da opinião pública.
Assim, e de uma forma geral, para além de noticiários extensíssimos – de hora e meia a duas horas – reproduzindo à exaustão as noticias de serviços informativos anteriores, a que se seguem programas ditos de entretenimento de uma indigência intelectual atroz, o que sobretudo temos são, muito mais do que programas de investigação séria e cuidada, horas e horas de comentários de opinadores de serviço. Que se apresentam como sabendo de tudo e que não raras vezes não só ocultam que dizem agora o contrário do que doutamente previram há um mês atrás, como tratam de escamotear as graves responsabilidades que inquestionavelmente têm (nomeadamente enquanto governantes) na situação extremamente debilitada em que a COVID-19 veio encontrar o nosso SNS.
É preciso ter desaforo, mas, na presente situação, está assim fora de causa que se consiga ouvir uma só voz que seja a interpelar um desses farsantes e a confrontá-lo, como merece, com as opções políticas que adoptou e executou quando esteve no governo.
As perguntas que não se fazem
E isto como se não fosse legítimo, por exemplo, os cidadãos portugueses questionarem por que razão hão-de acreditar agora naquilo que diz a Ministra da Saúde, Marta Temido, quando ela foi demitida de Presidente do Conselho Directivo da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), por o Tribunal de Contas – no seu relatório de auditoria nº 15/2017 (2ª Secção), de 12/9/2017 – ter posto a nu que essa entidade manipulava e falsificava os números das listas e dos tempos de espera dos pacientes do SNS, sem que até hoje a Ministra o tenha reconhecido e muito menos pedido desculpa por isso?
E não é mais que legítimo questionar também a sinceridade de quem, como a mesma Ministra Marta Temido, agora aparece a elogiar os profissionais de saúde, em particular os médicos e sobretudo os enfermeiros, proclamando que os portugueses “estão entregues aos melhores”, quando há um ano ou ano e meio atrás os atacava e insultava violentamente, apontando-os como seres oportunistas, irresponsáveis e até selvagens, ao serviço de grupos privados da Saúde, sem nunca se ter retratado nem pedido desculpas por tais barbaridades?
E, enfim, não é igualmente de todo justificado – mesmo sem pôr em causa a competência técnica e até a honestidades intelectual da Directora-Geral da Saúde, Graça Freitas – questionar se não era preferível, há um mês atrás, ter logo reconhecido que Portugal não tinha equipamentos individuais de protecção (como máscaras) e testes em número suficiente para equipar e testar todos os profissionais de Saúde (muito menos os bombeiros, forças policiais e de protecção civil, bem como os funcionários dos lares de idosos, e menos ainda esses mesmos idosos) e antes se tenha posto a invocar alegadas recomendações técnicas que teve depois de abandonar perante as evidências científicas das experiências de outros países (como o da República Checa quanto às máscaras) e das próprias indicações da OMS (quanto ao testar, testar sempre e cada vez mais), bem como das críticas de entidades como o Conselho Nacional das Escolas Médicas e as Ordens dos Médicos, dos Enfermeiros e dos Farmacêuticos?
Não teria sido melhor reconhecer logo as nossas falhas e insuficiências e tratar de as suprir com todas as nossas forças, em vez de logo desatar a gritar, à péssima maneira do antes do 25 de Abril, que as pessoas ou entidades que fizeram essas críticas e chamadas de atenção não passariam afinal de “politiqueiros”, senão mesmo de agitadores ou provocadores ao serviço de interesses inconfessáveis?!…
Mais! As entrevistas a responsáveis políticos apenas são possíveis se forem “fofinhas” e permitirem, por exemplo, a António Costa não ter sido nunca questionado sobre esta “brilhante” e enfática afirmação que fez numa entrevista à TVI em 23 de Março último: “Até agora não faltou nada no SNS, e não é previsível que venha a faltar o que quer que seja”.
É certo que, como diz o Povo, pela boca morre o peixe. Contudo, para isso, era preciso que houvesse um pescador-jornalista que não deixasse passar em claro Sua Excelência, mas a abafada e opressiva verdade é que não houve afinal nenhum.
Como não houve nenhum que confrontasse Marcelo Rebelo de Sousa sobre as suas declarações elogiosas acerca dos Bancos, depois de ter reunido com eles durante duas horas e meia, Bancos esses que ainda não anunciaram uma só medida dita – mesmo que só dita! – de combate à crise.
Ao invés, o que temos tido é:
silêncio absoluto sobre os 25.000 milhões de euros que, numa dúzia de anos, os trabalhadores portugueses tiveram de meter nos mesmos Bancos supostamente para evitar a sua falência, sendo que, passados todos estes anos, nem um só banqueiro fraudulento se encontra preso e 20.000 milhões continuam lá enfiados; continuação da imposição, sobretudo aos pequenos devedores, nomeadamente particulares e pequenas e médias empresas, de taxas de juro efectivas absolutamente exorbitantes (da ordem dos 4%), bem como das comissões astronómicas cobradas aos pequenos depositantes, designadamente a título de uma inexistente gestão da conta; exigência – já proibida em diversos países europeus – de garantias pessoais dos sócios de uma PME, como avales e letras e livranças em branco, para a concessão de empréstimos, etc., etc., etc…
E há alguém que questione – e essas questões sejam depois amplamente conhecidas de leitores, de ouvintes e, sobretudo, de telespectadores – quer o laudatório Presidente, quer os “donos disto tudo”? Não, claro que não…
A censura…
E se uma entrevista “oficial” sai um pouco que seja desse registo da “fofice” e da “unicidade” (como alguns consideram que terá sucedido na entrevista feia pelo Jornalista da RTP, Carlos Daniel, em 5 de Abril, à Ministra da Saúde), eis que saltam, designadamente na empresa e sobretudo nas redes sociais, as “corajosas” tropas de choque afectas ao governo, insultando de todas as formas o jornalista “prevaricador”, valendo tudo, inclusive chamá-lo, indirecta, mas muito claramente, de “chulo”(!?). Apenas porque confrontou Sua Excelência a Ministra com a incongruência das suas posições, por exemplo, a propósito do uso das máscaras e das faltas de meios materiais e humanos no SNS. Em suma: ou é a voz do dono que se faz ouvir, ou não tem direito à palavra! E ainda dizem que isto é uma Democracia!…
Ora, é exactamente este ambiente de censura acerca daquilo que não convém que se saiba que está afinal a impedir que se conheça quer a real extensão da verdadeira tragédia que está a atingir centenas e centenas de milhares de trabalhadores, quer o combate, verdadeiramente heróico nalguns casos, que alguns deles estão a ousar travar. A lógica dominante é lastimavelmente esta:
a Pátria, desculpem, a política governamental não se discute e, logo, há que abafar a todo o custo esses factos e as vozes dissonantes.
A real situação dos trabalhadores
A OMS estima que, no final desta crise, mais de 190 milhões de trabalhadores estarão em todo o mundo desempregados, 15 milhões dos quais, pelo menos, só na Europa. Em Portugal, os números oficiais apontam para que, neste momento, já mais de 500 mil trabalhadores tenham sido colocados em lay-off. Somem-se a estes muitos trabalhadores ditos por conta própria como os trabalhadores “à chamada” ou on call, os comissionistas, inúmeros taxistas e ainda outros trabalhadores independentes como artistas, e também advogados e solicitadores, estes últimos com a particular circunstância de descontarem, não para a Segurança Social, mas para uma Caixa própria (Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores – CPAS) que não lhes dá apoio algum e cujo Presidente da Direcção ainda se arroga mandar os Advogados “sair de casa e cavar trabalho”!…
Se a todos estes trabalhadores somarmos aqueles que operam na área do chamado “trabalho informal” ou “atípico” – ou seja, aquele que funciona por completo à margem da lei e que representa 25% do nosso PIB – nós já estaremos a falar de
muito mais de milhão e meio de pessoas privadas de parte ou mesmo da totalidade do seu meio de subsistência. Sem que ninguém lhes dê voz pois só a tem, por exemplo, a Confederação Empresarial de Portugal (CIP) e para reclamar do Estado 20 mil milhões a fundo perdido.
Mas evidentemente que aquela realidade contraria a imagem cor-de-rosa que se pretende dar – a de que se estão a proteger os trabalhadores e os seus salários – e, então, qual a solução?
Silencie-se o mensageiro e abafe-se a verdade dos factos!
E é esta mesma lógica censória que tem impedido que a maioria da opinião pública conheça as barbaridades e os crimes que estão a ser cometidos pelos grandes patrões da estiva do porto de Lisboa, bem como a luta heróica que aí os estivadores e o seu sindicato – o Sindicato dos Estivadores e Actividade Logística (SEAL) – lhes estão, e desde há meses, a opor.
A situação dos Estivadores – uma vez mais e sempre
Na verdade,
o que se vem passando no porto de Lisboa é verdadeiramente estarrecedor e consiste no seguinte:
Os patrões da estiva do porto de Lisboa, com o grupo turco YLPORT (um gigante a nível mundial da actividade portuária e da estiva) à cabeça, criaram uma empresa que lhes assegurasse a prestação de trabalho portuário por estivadores contratados através de tal empresa, a Associação Empresa Trabalhos Portuários de Lisboa (AETPL), da qual são assim, simultaneamente e para o que lhes interessa, donos e senhores (enquanto titulares do respectivo capital social) e clientes (enquanto recebedores ou beneficiários da actividade dos estivadores).
Tendo-se visto forçados, por virtude da luta dos estivadores e do Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Conferentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal (SEAL), a celebrar com este um contrato colectivo de trabalho há cerca de três anos atrás e, em 2018 e 2019, dois acordos de aumentos de salários (pois que estes não eram actualizados há nove anos), os referidos patrões da estiva, através da AETPL, nunca cumpriram nem com o contrato colectivo nem com os referidos dois acordos. E, mais do que isso, gizaram um plano, tão maquiavélico quanto ilegal, para se verem livres da contratação colectiva e dos estivadores filiados no SEAL.
Primeiro, na qualidade de donos da AETPL, não actualizam (desde há 20 anos!!) o tarifário dos serviços por esta assegurados e depois, agora na qualidade de clientes, não lhes pagam tais serviços. Desta forma fraudulenta, provocam não só salários em atraso aos estivadores filiados no SEAL (que, assim e por esta razão, nos últimos 18 meses, receberam os seus vencimentos em cerca de 50 prestações!), como a insolvência da própria AETPL, com a sua consequente extinção, o desaparecimento da contratação colectiva e o despedimento dos estivadores filiados no SEAL.
Perante esta inefável manobra, os trabalhadores decretaram greve (assegurando os respectivos serviços mínimos), exigiram dos patrões a imediata cessação de todas as ilegalidades e reclamaram do governo que interviesse para pôr cobro à fraude e ao golpe em curso.
Os patrões – decerto cientes de que têm as “costas quentes” pela parte de um governo que sabe ser forte com os fracos, mas é de todo reverente e submisso com os fortes – prosseguiram na manobra, trataram de intensificar as discriminações, as ameaças e as perseguições e atreveram-se até a fazer lock-out, impedindo os estivadores escalados para os serviços mínimos de os irem prestar.
E o que fez o governo do Sr. António Costa? Junto dos patrões, nada! Já contra os trabalhadores apressou-se a decretar a requisição civil de que tanto gosta.
O que se seguiu então é verdadeiramente indizível! Os patrões da estiva consumaram a apresentação da AETPL à insolvência, mantiveram os salários em atraso e intensificaram as manobras persecutórias, instaurando um, dois ou até mais processos disciplinares visando o despedimento contra todos os seus estivadores profissionais do SEAL, muitos deles com décadas de experiência profissional. Ao mesmo tempo que tratavam de contratar trabalhadores mais precários e com salários menores através de outra empresa por eles criada (a Porlis)!?
Os próprios administradores do grupo YLPORT, cercados de “gorilas”, andaram a percorrer os diversos terminais do porto de Lisboa, ameaçando directa e explicitamente os trabalhadores que aí se encontravam.
Não contentes ainda com isto – e sabedores da impunidade que o governo lhes confere – contrataram seguranças não só para exercer a actividade de estiva em substituição dos estivadores, não obstante não possuírem habilitações para tal (com todos os riscos de segurança e saúde daí decorrentes), como para procurarem intimidar ainda mais os estivadores em luta.
E, segundo informa o SEAL, o arrogante desplante de tais patrões é de tal ordem que, inclusive desrespeitando as regras legais em vigor sobre o confinamento geográfico e sobre a proibição de funcionamento de escolas e de concentração de pessoas em recintos fechados, estão a levar a cabo, em pleno estado de emergência, aulas ditas de formação, em salas fechadas, com dezenas de formandos.
Não obstante todos estes desmandos, toda a cobertura do governo e todas as ameaças e perseguições, o que fizeram o SEAL e os seus associados estivadores? Não desistiram da luta, não deixaram de denunciar as falcatruas e arbítrios patronais, procuraram assegurar o funcionamento mínimo do porto de Lisboa, completamente sabotado pelo grupo YLPORT e companhia, e já marcaram uma nova greve a partir de 3 de Junho próximo!
Ora, aquilo que a propaganda oficial pretende impor é o desconhecimento pelos cidadãos portugueses, e em particular pelos trabalhadores cujos direitos estão, por esse país fora, a ser atacados e inutilizados por todas as formas, não apenas o conjunto de incomensuráveis ilegalidades que o “Estado de Direito” e a “Democracia” do Sr. Marcelo e do Sr. Costa permitem impunemente aos fortes e aos poderosos, mas, mais do que isso, é este exemplo dos estivadores do porto de Lisboa e da sua corajosa e exemplar luta.
E aí é que está verdadeiramente o problema! Grandes patrões e governantes estremecem perante esta questão: e se este exemplo é conhecido e, pior, é seguido?
É por tudo isto que, ainda e uma vez mais, mas agora com um significado verdadeiramente nacional, a grande e empolgante palavra de ordem dos estivadores em luta ganha uma nova e muito mais ampla dimensão e importância: “Nem um passo atrás!”.
Os trabalhadores devem, pois, unir-se, organizar-se e resistir. Porque só é verdadeiramente vencido quem à partida desistiu de lutar…